sábado, 2 de janeiro de 2010

SEBASTI'AO DIAS, GRANDE POETA DA VIOLA

SEBASTIÃO DIAS FILHO (13-09-1950, st. Timbaúba, Ouro Branco), então município de Jardim do Seridó-RN, do qual foi desmembrado em 21-11-1953, mas instalado oficialmente desde 16-07-1905, data de sua primeira feira, como povoado Espírito Santo. Com esse registro, baseado em informações do próprio poeta e em Luís da Câmara Cascudo (Nomes da Terra, Fundação José Augusto, 1968, p. 222), corrijo falha em meu livro REPENTES E DESAFIOS, Centro Gráfico do Senado Federal, 1985, p.235), no qual constou a cidade de Caicó como berço do excepcional repentista. Contudo, corroboro o que dele disse naquela obra: (...) “é uma das mais fortes expressões do repente nordestino. Simpático, inspirado, canta bonito e goza de justa fama em toda a região por onde se estende a magia de seu talento”.
Sem sombra de dúvida, Sebastião Dias é um dos mais completos artistas da viola. Poeta de inspiração encantadora pela beleza e raridade das imagens que esbanja em seus improvisos. Poucos cantadores se aproximam dele no brilho da poesia, na doçura e na sonoridade dos versos, que surpreendem e fascinam a todo instante. Chamam-no o Chico Buarque da Viola, mas o famoso autor de CONSTRUÇÃO e outros marcos indeléveis da música brasileira não tem o dom do improviso com que as musas bafejaram nosso Sebastião Dias, esse superdotado do repente cuja lira jamais desafinou. Canário sertanejo, seu destino é cantar, e assim nos encanta com o alumbramento de sua imaginação privilegiada, criativa, inesgotável. Em suas mãos, a viola atravessa para o terceiro milênio elevada e vitoriosa, buscando caminhos de um futuro de sonho e de poesia imorredoura.
Numa de suas grandes cantorias, o assunto girava em torno dos sofrimentos da criança pobre do sertão. Seu companheiro observou:

“Como é grande o sofrimento
da criança sem destino!”

Sebastião, nesta sextilha, pincelou um quadro de tristeza, mas também de beleza e realismo :
“Já é hora em que o menino
na calçada come fuba,
debaixo de uma choupana
coberta de carnaúba,
dessas que a ventania
com qualquer sopro derruba!”

(Fontes: diversas informações verbais).

Num festival de repentistas em Patos-PB, Sebastião da Silva cantava com Dias, e, já cansado, disse:
“Fui o escravo da festa
e o espetáculo termina!”

Sebastião Dias, em grande inspiração, rematou:

“Um parte para Campina,
outro para Guarabira,
e eu, como aventureiro,
vou em busca de Tabira...
Quem disser que sou feliz,
Podem dizer que é mentira!”

(Fonte: Damião Galvão, Serra Negra do Norte-RN).

Sebastião fazia feliz temporada em São Paulo, mas com muita saudade da terra querida, onde deixara amigos e parentes. Numa cantoria, o companheiro lhe cedeu esta deixa:
“Como é que você está
nesta terra bandeirante?”

Sebastião improvisou inspirado e saudoso:

“Na Capital Bandeirante
eu vim fazer um passeio,
mas, ao deixar o Nordeste,
parti a alma no meio...
Ou vem a banda de lá,
Ou vai a banda que veio.

Numa cantoria em João Pessoa - PB, num local junto à lagoa que embeleza o centro da cidade, havia um painel com muitos quadros de coisas do sertão. O companheiro de Sebastião fez esta referência: “É sertão por todo canto.”

Sebastião atentou para a pintura de uma garça e fez esta beleza de sextilha:

“O pintor caprichou tanto
e a pintura está tão boa,
que até a garça pintada
no aceiro da lagoa
está tão linda e perfeita
que se espantar ela voa.

(Informante: Aquino Neto – Natal – RN)

Numa cantoria, quando o assunto era a natureza, o parceiro de Sebastião fechou assim uma sextilha: “Toda a natureza treme/ na luz do sol escaldante.” Dias completou:
“Dessa hora por diante
a terra aclama o mormaço;
um pedaço de jurema
se esfrega noutro pedaço;
parecem duas pessoas
pegando queda-de-braço.”

(Fonte: Geraldo Amâncio/Wanderley Pereira, DE REPENTE, CANTORIA, Press. Publicitários Associados, Fortaleza, s/d, p. 120).
Falando sobre quadros do inverno, Sebastião Dias, em sete-linhas, improvisou:
“Quando o chão está molhado
aparecem coisas boas:
se levantam cogumelos
que as capas parecem broas;
os sapos chocam de ruma;
bordam com cachos de espuma
o cenário das lagoas.”

(Fonte: idem, idem, p. 120).

Com o cantador Pedro Alcântara, Dias homenageava Severino Pinto que morrera havia pouco tempo. Alcântara ofereceu estas deixa; “No final da existência/findou aleijado e cego.” Dias cantou comovido:

“Hoje a Bandeira do Nego
hasteou só a metade;
a Paraíba chorou
como uma irmã com saudade,
porque Pinto do Monteiro
partiu para a eternidade.”

(Fonte: idem, idem, p. 161).

Afugentando preconceitos, Dias cantou certa vez assim:

“O cemitério é a casa
dos nossos restos mortais;
ambição, ódio e vingança
ficam do portão pra trás,
porque, do portão pra frente,
todos nós somos iguais.”

(Fonte: idem, idem, p. 271).

Quando cantava com Geraldo Amâncio, num festival, na cidade de Paulista – PB, Sebastião brindou a platéia com esta estrofe de grande beleza:

-Na madrugada altaneira,
geme o vento atrás do monte;
um cururu toma banho
na água fresca da fonte
e a lua dorme emborcada
no colchão do horizonte.

(Fonte: o poeta José de Sousa, de Paulista – PB).

Em Brasília, Sebastião cantava na comemoração do nascimento de dois filhos gêmeos de um senhor chamado Paulo, dono de uma panificadora. Sobre o evento, disse de improviso:

-Paulo tem duas estrelas
dentro das suas manhãs:
Uma mãe teve dois filhos
Para invejar outras mães
E um bom padeiro inventou
Uma forma pra dois pães.

(Fonte: Romão Gomes de Olinda, Brasília – DF).

Após uma dessas cruéis estiagens nordestinas, um companheiro de cantoria, discorrendo sobre o assunto, concluiu assim uma sextilha: “Agora a seca sumiu.”
Sebastião, o mago das belas imagens, completou:

-Depois que a chuva caiu,
ficou verde o arrebol,
a babugem cobre o chão;
parece um verde lençol,
cicatrizando as feridas
das queimaduras do sol.

(Fonte: o poeta Ademar Macedo, Natal – RN).

Numa cantoria em Brasília, Sebastião recebeu esta deixa interrogativa do companheiro: - “Me diga como deixou /a nossa Campina Grande”. Sebastião, em seu largo estilo, respondeu:

-Deixei uma seca grande
no Nordeste brasileiro:
de verde, só aveloz,
papagaio e juazeiro,
que o Nordeste, pra sorrir,
tem que Deus chorar primeiro!

(Fonte: Idem).

Falando de coisas tristes, certa vez Sebastião improvisou assim:

-É um dia de tristeza
quando a mãe para o céu vai.
Os filhos se cobrem em prantos;
O caçula diz: ô pai,
Não vê, mamãe ta dormindo!
Abra o caixão que ela sai!

(Fonte: Normando Vasconcelos, obra citada, p. 194).

O mesmo pesquisador, num pé-de-parede, após um festival ocorrido em Arcoverde – PE, em 1995, anotou estas belas sextilhas de Sebastião, cantando com Valdir Teles, em seguida à apresentação de Severino Ferreira e Severino Feitosa:

-A Feitosa e a Ferreira,
pedir licença eu queria,
para dar um empurrão
no final da cantoria,
pra ver o corpo da noite
cair por cima do dia.

-Vou me tornar vagabundo,
cantar pra o meu público fã,
que Deus, em forma de nuvem,
está por detrás da chã
pra ver o rosto do dia
nos espelhos da manhã.

(Obra citada, págs. 194/195).

O jovem cantador Diomedes Mariano, sentindo-se meio sufocado na cantoria, pediu a Sebastião: - “Sebastião, por favor /deixe eu cantar à vontade!” Sebastião atendeu ao pedido do colega principiante, mas ainda deu duro em cima do menino:

-Pode cantar à vontade
se apresentando pro povo,
que eu não vou jogar terra
na cara de um pinto novo
que está com o bico de fora
e o resto dentro do ovo! (1)
Obs. Do livro REPENTISTAS DO NORDESTE, pronto para publicar.

PINTO DO MONTEIRO, SIMBOLO DA CANTORIA

SEVERINO LOURENÇO DA SILVA PINTO (Pinto do Monteiro) – Monteiro-PB – 1895 – 1990, é inquestionavelmente o nome mais respeitado no mundo da cantoria. Cantou a primeira vez em 19-01-1919, com Saturnino Mandu, no povoado Lagoa da Ilha, município de Monteiro-PB, aos 24 anos de idade. Entre cantadores e pesquisadores, praticamente ninguém lhe nega a coroa de maior repentista de todos os tempos. Tinha o dom da resposta. Seus grandes repentes pareciam fuzilar como um tiro certeiro, sem ensanchas para os adversários que, inúmeras vezes, tiveram de emborcar a viola diante do velho mestre. Conheci pessoalmente o velho Pinto no dia 5 de janeiro de 1982, quando, em trabalho de pesquisa, fui visitá-lo na cidade de Sertânia-Pe, onde morava numa pobre e pequena casa. O gênio do repente chegava ao fim da vida vitorioso e feliz como cantador, mas economicamente na penúria e sem esconder o amargor de algumas decepções pela falta de reconhecimento de sua grandeza de poeta por parte do poder público de sua terra.

João Furiba, em desafio com Pinto, gabava-se de hospedar o mestre em sua casa, em São Tomé, oferecendo-lhe o melhor conforto:

“Você é do meu convívio,
come e bebe lá em casa.”

Como o desafio andava quente, Pinto não teve contemplação com o adversário e disparou:
“Vou construir uma casa
junto ao rio Parnaíba,
de frente pra Pernambuco,
de costas pra a Paraíba,
só pra não ver duas coisas:
São Tomé e João Furiba!”

(Conforme Jomaci Dantas da Nóbrega).

Certo cantador, em apuros diante de Pinto, confessou sua desgraça:


“Cantando com Pinto velho,
tou como ave sem pena.”

Pinto deu o tiro de misericórdia na presa já abatida:

“Mas toda ave é de pena;
você disse uma heresia!
Com exceção de uma só,
chamada Ave-Maria,
aquela que o sino toca
depois da morte do dia.

(Conf. Moacir Laurentino).

Um cantador que se debatia com o velho Pinto andou laborando em erros na feitura dos versos, mas se desculpou perante o mestre:

“Pelo erro cometido,
quero ser dissimulado.”

Pinto, mesmo desconcertante na resposta, procurou conformar o colega:

“Você já está perdoado,
que a verdade não se nega.
Eu vi, mas fiz que não vi
o defeito do colega,
porque quem está se afogando
em qualquer talo se pega.”

(Informante: Moacir Laurentino).

O jovem cantador Raimundo Nonato, numa cantoria com o mestre Pinto do Monteiro, referiu-se à cidade de Cajazeiras-PB:
“Tenho amor a Cajazeiras.”

Pinto, desfiando velhas mágoas da terra natal, assim se expressou:

“Eu estimo Cajazeiras
que é o terreno seu.
Eu sou Pinto do Monteiro,
mas Monteiro não é meu!
Dei tanto nome a Monteiro,
Monteiro nada me deu!”

(Informante: o repentista Moacir Laurentino).

Numa cantoria, o desafiante de Pinto, gripado e já com a cara cheia de pinga, sem condições de continuar na luta, disse:

“De bebida já estou farto!”

O velho Pinto, sempre bamba na resposta, falou franco:

“Você não partindo, eu parto;
você não seguindo, eu sigo.
Beba aí sua cerveja,
Limpe o seu catarro antigo,
Previna seu pensamento
Pra poder cantar comigo!”

(Informante: o cantador José Morais).

Cantoria em Monteiro-PB. Pinto, em desafio com João Furiba, confessou que estava tendo prejuízo na pequena mercearia que tinha e que, em face disso, até estava pensando abandoná-la e fazer uma viagem ao Rio Grande do Norte, em busca de melhoria de vida:

“Negociar sem ganhar
não há cristão que suporte!
é melhor a gente ir
ao Rio Grande do Norte.

Furiba respondeu com ironia:

“Se você quiser ter sorte
na sua mercearia,
coloque uma etiqueta
em cada mercadoria
e ponha meu nome nela
que conquista a freguesia.

Pinto, ferido no amor próprio, replicou assanhado:

“Triste da mercadoria
que nela tiver seu nome!
Pode vir um guabiru
Com oito dias de fome,
Caga o pão, mija no queijo,
Passa por cima e não come!” (1)

Doutra feita, Furiba cantava com Pinto em Tabira – PE. O desembargador, poeta e glosador Dr. Manoel Rafael Neto, presente à cantoria, pediu um mourão em desafio. Pinto não estava querendo briga. Furiba começou a provocá-lo:

“O pedido do doutor
de qualquer forma eu aceito,
que ele, além de poeta,
é um Juiz de Direito.”

Pinto reagiu e disparou:

“Sendo com calma eu aceito,
com desaforo eu respondo,
porque minha natureza
é como a do maribondo:
nem que morra machucado,
meu ferrão eu não escondo!” (1)

Os dois referidos repentistas cantavam em Sertânea - PE, quando entrou um rapaz com as mãos encaroçadas de verrugas. Como ele aparentasse boa disposição para pagar aos cantadores, estes passaram a elogiá-lo, mas o pretenso pagante, após alguns titubeios, terminou colocando na bandeja uma cedulazinha de ínfimo valor. Furiba, vendo que fora debalde o esforço da louvação, desabafou:

“Elogiei tanto tempo,
mas perdi meu elogio!”

Pinto não alisou a pele do pagador mesquinho:

“Por isso é que não confio
em gente que tem verruga,
cachorro da boca preta,
terreno que não enxuga,
comida que doido enjeita,
casa que cigano aluga!” (1)

(1) – Informante: João Furiba.

Em 1972, Pinto cantava com Firmo Batista, na cidade de Monteiro – PB, na residência de um apologista chamado João Piaba. Os poetas cantaram loas muito tempo para um rapaz de boa aparência que, por fim, lhes ofereceu quantia insignificante, e esta ainda foi desviada pelo vento caindo fora da bandeja. Firmo Batista observou com desencanto:

“Foi tanto tempo chamando
para tão pouca quantia!”

Pinto não mediu palavras diante da ação mesquinha do rapaz:

“Esse é, como eu já sabia,
fruta de ponta de rama.
Cabra dessa qualidade,
Pinto cantando não chama,
Que cabra ruim não dá leite,
E o pouco que dá derrama!”

(Informante: Raimundo Lopes, Doca do Retrato, Paulista – PB.

Pinto, já bastante velho e doente, atendeu ao pedido de um amigo e fez um baião de viola com João Furiba. Este rematou assim uma sextilha:

“Faz pena você morrer
e ficar longe da gente!”

O velho Pinto, reunindo as forças que se esvaíam, respondeu triste e agradecido:
“Eu tava muito doente,
com piora e mais piora;
quando escutei sua voz
senti logo uma melhora,
mas vou piorar de novo
quando você for embora!”

(Informante: o cantador Severino Ferreira).

Numa cantoria, Pinto já se encontrava cansado de tanto ouvir o companheiro falar das secas de sua terra, naturalmente com exageros e mentiras. Este findou assim uma estância:
“Já está com muitos anos
que choveu em minha terra.’

O mestre Pinto encerrou o assunto com esta mentirosa mas belíssima sextilha

“Eu também sou de uma terra
que nunca deu nem saúva;
meu avô morreu de velho,
minha avó ficou viúva;
morreu com cento e dez anos
e nunca viu uma chuva.”

(Fonte: Geraldo Amâncio/Vanderley Pedreira, obra citada, p. 33).

Pinto e João Furiba cantavam em Cachoeirinha – PE, na residência de um morador do sr. Severino Lopes, que residia na cidade de Belo Jardim – PE. Furiba elogiava o fazendeiro, buscando alguma paga mais gorda:

“Esse grande fazendeiro
só cria gado ‘turino’.”

Pinto, meio enjoado e com suspeitas sobre as intenções do patrão do dono da casa, respondeu corajoso:

“Pode entrar, seu Severino,
e me pagar, se puder.
Rico na casa do pobre
alguma coisa ele quer:
ou a sela, ou o cavalo,
ou a filha, ou a mulher.”

Obs. O mestre Pinto não errou o palpite, pois, mais tarde, o patrão andava agarrado com a filha do morador. (1).

Em 1964, Furiba, a pedido de um fazendeiro chamado Manoel Felipe, organizou uma cantoria sua com Pinto. Furiba puxou o primeiro baião e, como de praxe, esperou que Pinto iniciasse o segundo, mas o mestre Pinto não quis partir na frente, forçando Furiba a fazê-lo:

“Pinto, meu caro colega,
primeiro baião foi meu;
eu agora desejava
que o segundo fosse seu,
que eu não vou servir de guia
pra quem vê mais do que eu.”

Pinto, que não sabia ficar por baixo, respondeu:

“Mas o trato aqui é seu,
o povo e o ambiente;
sendo eu fazia o mesmo
para agradar minha gente,
que, quando o defunto é meu,
sou eu quem pega na frente. (1)

Noutra cantoria de Pinto com Furiba, o velho Pinto, lampeiro, dizia-se ainda em condições de namorar e casar. Furiba, mentindo quanto aos anos de vida, ponderou:
“Deixa pra mim, que só tenho
dezoito anos de idade.’

Pinto, também resvalando para o exagero, deu resposta pronta, como de costume:
“Isso aí não é verdade.
Você quer ser inocente:
tem vinte anos que canta,
quinze que bebe aguardente,
trinta que engana o povo,
quarenta e cinco que mente!” (1)

(1) Fonte: João Furiba, obra citada, páginas 13, 37 e 40).

O velho aedo do Monteiro, em momento de grande inspiração e criatividade, recebeu de um companheiro deixa mais ou menos assim:

“Esta vida é tortuosa
e muito incompreendida!”

Pinto rematou como um mágico do repente:

“Eu comparo nossa vida
com aquela dobra do esse:
é uma ponta que sobe,
é outra ponta que desce
e a volta que tem no meio
nem todo mundo conhece.”

(Citado pelo cantor popular e compositor Antônio Nóbrega, Jornal do Brasil, 31-10-98, p. 3-B)

Certo repentista ofereceu a Pinto esta deixa:
“Abraão saudou Jesus
na casa do Pai Eterno”

Pinto respondeu bem a seu modo:

“Vá mentir lá no inferno,
cantador intrometido,
que quando Abraão viveu
Jesus não tinha nascido,
e quando Jesus nasceu
Abraão tinha morrido!” (1)

O cantador Lino Pedra Azul, num desafio com Pinto, concluiu assim uma sextilha:
“Não é pinto nem é galo,
como se tornou capão?”

O velho Pinto respondeu impiedoso:

“Como me tornei capão,
te dou resposta pequena:
pelaram a parte precisa,
cortaram e se deu a cena,
mas tua mãe, quando soube,
chorou um ano com pena!” (1)

Certo cantador desafiou assim o mestre Pinto:

“Você é tido e havido
como um cantador cruel,
mas não se exalte por isso
porque não vou lhe dar mel;
o que tenho pra você
é uma taça de fel!”

Pinto reagiu feroz:

“Eu sou como a cascavel,
que não respeita ninguém:
se enrosca numa vereda,
morde quem vai e quem vem,
e, na hora que perde o bote,
morre da raiva que tem!” (1)

Outro adversário, ameaçou Pinto assim:

“Eu junto o que você tem
e queimo numa fogueira!”

Pinto foi desconcertante:

“Você deixe de besteira,
que eu vou a sua morada,
boto terra no seu leite,
cuspo na sua coalhada
e enfinco um touco na porta
pra lhe matar de topada!” (1)

Um cantador, que se encontrava tomando couro de Pinto, apelou para a velha rivalidade deste com Lourival Batista:

“Em vez de bater em mim,
vá bater em Lourival!”

Pinto, como jararaca assanhada, despejou o veneno:

“Inda vejo Lourival
morto debaixo de um trem,
ou então pedindo esmola
onde não passe ninguém,
e, se passar, seja um cego,
pedindo esmola também!”

Ivanildo Vila Nova, num baião de viola com Pinto, disse:

Não tenha medo de mim
Nem vá ficar de vigília
Que eu não vou lhe causar susto
Nem assombro nem quizília,
Que o mal que quiser pra si
Tenho pra minha família.

O velho Pinto, mesmo já em avançada idade, mostrou a força de seu gênio, nesta forte resposta:
-Pode vender a mobília,
o seu prédio, a sua casa,
porque você em cantiga
já sei que não me atanaza,
não tora o bico do Pinto
nem corta a ponta da asa.

(Fonte: Ivo Mascena Veras, PINTO VELHO DO MONTEIRO, o maior repentista do século, Recife, 2002, p. 223).

No mesmo baião, Ivanildo lhe rende homenagem e respeito:

-Pra manchar sua conduta
não tem jogral nem aedo;
ninguém fere com o verso
nem lhe ofende com o dedo.
Quem não tem não chega perto,
Quem tem não chega com medo.

O mestre Pinto reconhece que sua melhor fase já passou e que sua própria viola já anda quase solitária:


-Esse tempo passou cedo,
levou tudo quanto eu tinha:
carregou meu pensamento,
me deixou sem ter vizinha,
batendo nesta viola
que toca quase sozinha!

(Fonte: idem, idem, p. 224/225).

ORIGEM DA CANTORIA NORDESTINA

ORIGEM DA CANTORIA NORDESTINA

A cantoria de repente teve início, aqui no Nordeste, em terras paraibanas, ali pelas quebradas da serra do Teixeira, no meado do século dezenove, com o surgimento dos primeiros cantadores e repentistas: Agostinho Nunes da Costa(1797-1852) e seus filhos Antônio Ugolino Nunes da Costa, Ugolino do Sabugi(Teixeira – 1832-1895), primeiro grande cantador brasileiro, e Nicandro Nunes da Costa(Teixeira – 1829-1918), o poeta ferreiro. Nessa fase inicial e na de afirmação da cantoria como profissão e arte, vamos encontrar Silvino Pirauá Lima(Patos-PB – 1848-1913), introdutor da sextilha no cordel e na cantoria, do uso da deixa e do martelo-agalopado como se canta hoje; Germano Alves de Araújo Leitão(Germano da Lagoa – Teixeira – PB – 1842-1904); Romano da Mãe d’Água(1840-1891), Francisco Romano Caluête, ou Francisco Romano, considerado o maior cantador de seu tempo, tornado legenda pelas famosas pelejas com Inácio da Catingueira(Catingueira-PB – 1845-1881), o chamado gênio escravo que engrandeceu a cantoria pela beleza e espontaneidade de seu estro. Outro cantador de grande expressão que marcou espaço na época foi Bernardo Nogueira(Teixeira – 1832-1895), de quem diz Câmara Cascudo: - “Violeiro afamado, repentista invencível, mestre-de-armas sertanejo, jogando bem espada e cacete, era mais inteligente que letrado.” (Vaqueiros e Cantadores, p. 309).

Alguns elegem Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno(Bahia – 1633-1693) e o Padre Domingos Caldas Barbosa(1738 – 1800) como precursores da cantoria de viola no Brasil. Os dois, na verdade bons poetas, foram cantadores de modinhas ao som da viola, nunca, porém, repentistas dados a duros e longos desafios. Improvisavam quadrinhas vez por outra, em saraus e reuniões de intelectuais. Caldas Barbosa, em Portugal, despertou a rivalidade do grande Bocage, em face do prestígio do primeiro nos salões palacianos, cantando modinhas e fazendo quadras, vez por outra. Uma feita, Bocage explodiu: - “Improvisa berrando o bode rouco!” Caldas Barbosa, em resposta, acentuou que Bocage,

“Um homem de pouca fé,
Só não fala de Jesus
Porque não sabe quem é!”

O nosso mestre maior, Câmara Cascudo, que estudou a obra de Domingos Caldas Barbosa, para um volume da coleção Nossos Clássicos, não o considerou precursor da cantoria, assim como não deu também tal título a Gregório de Matos. E o mestre Cascudo não deixou a desejar a respeito das origens do desafio, do repente e da cantoria.
Os dois poetas, sem dúvida, influenciaram os violeiros que cantam modinhas e músicas caipiras, cuja presença em Goiás e Minas é considerável atualmente. O programa da cantora Inezita Barroso – VIOLA MINHA VIOLA – na TV CULTURA, é palco desses inúmeros violeiros que muitas vezes nos levam às lágrimas com suas modinhas predominantemente tristes e langorosas.
Enquanto isso, a nossa cantoria de repente caracteriza-se pelo confronto entre cantadores, ou seja, pelo desafio, cuja origem remonta à Grécia Antiga.

A esse respeito, muito se tem questionado, nos últimos tempos, na ânsia de aclarar as dúvidas e fincar uma estaca em algum ponto do tempo e do espaço que possa escorar confortavelmente os estudiosos do assunto e dar resposta firme ao enorme rol de curiosidades insatisfeitas. No Brasil, somente Cascudo estudou diretamente e com profundidade o assunto. Sílvio Romero, João Ribeiro, Gustavo Barroso, Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota, Renato Almeida, além de outros, cuidaram da cultura popular e do folclore, mas praticamente passaram de largo sobre a origem de nossa cantoria.

Parece-nos que, nessa busca do elo inicial da corrente eletrizante da cantoria nordestina, ninguém foi mais longe, com respaldo bibliográfico, do que o nosso gigantesco Luís da Câmara Cascudo, que o vai vislumbrar no antigo canto amebeu grego (desafio entre pastores), cuja técnica teria sido adotada por Homero na Ilíada e na Odisséia. Oportuno lembrar que Homero viveu (se é que viveu) por volta dos séculos IX e VIII antes de Cristo. Assim, o canto amebeu grego já era exercitado há, pelo menos, trinta séculos de hoje. O mestre potiguar assinala que Horácio e Virgílio testemunharam a influência desse canto nas populações rurais de seu país. “O canto alternado reaparece na Idade Média, nas lutas dos Jonglers, trouveros, Troubadours, Minesingers, na França, Alemanha, Flandres, sob o nome de tenson ou de Jeux-partis, diálogos contraditórios, declamados com acompanhamento de laúde ou viola, a viola de arco, avó da rabeca sertaneja”, argumenta Cascudo. Nosso gênio potiguar jamais abriu mão dessa tese e a sustentou no Dicionário do Folclore Brasileiro, em Vaqueiros e Cantadores e em Literatura Oral no Brasil. Contudo, ressalta que os árabes conheceram tal canto. Registra, também, a posição discordante de Teófilo Braga (1843-1924), grande historiador da literatura portuguesa, que julgava o desafio português, ou desgarrada, de origem árabe imitado pelos provençais, mas não arreda pé de sua tese, acrescentando apoio na obra de Charles Barbier – Introdução aos Idílios de Teócrito, de que transcreve longa página no próprio original francês. (Cascudo não gostava de traduzir as transcrições de outras línguas).
As posições de Cascudo e de Teófilo Braga trilham os seguintes caminhos:
a) Para Cascudo, os árabes absorveram o desafio dos trovadores provençais, advindo do canto amebeu grego, e o levaram para o oriente:
b) Para Teófilo Braga, os trovadores provençais receberam o desafio dos árabes e o imitaram em suas cantigas.

Sobre essas posições conflitantes dos dois mestres, leia-se Literatura Oral no Brasil, 1984, pp. 346/347.


Um enfoque condizente com a posição de Teófilo Braga é dado pelo Professor de estética e música e violonista da UFPE Sr. Luís Soler, em seu livro RAÍZES ÁRABES, NA TRADIÇÃO POÉTICO-MUSICAL DO SERTÃO NORDESTINO, publicado em 1978, citado por Alberto da Cunha Melo, (UM CERTO LOURO DO PAJEÚ, edição da UFRN, Natal, 2001, p. 61/65).

O autor de UM CERTO LOURO DO PAJEÚ, abraçando a tese do Prof. Luís Soler, admite que “a literatura oral é pré-histórica, pré-documental, pré-escrita, do beduíno do deserto ao repentista nordestino.” (obr. cit. , p. 39).
Um dos trunfos dessa tese é a origem árabe da rabeca e da viola, instrumentos que acompanham os cantadores nordestinos desde os mais antigos. Sabe-se que a viola foi, provavelmente, o primeiro instrumento de cordas que o português divulgou no Brasil (século XVI), porque na época do nosso povoamento a viola em Portugal estava em seu grande esplendor. Por outro lado, a orquestra típica das festas jesuíticas se compunha da viola, do pandeiro, do tamboril e da flauta. (Cascudo, Dicionário). Mas tudo indica que a viola, naquela época, ainda não era a dos nossos cantadores de repente e desafio, senão a dos cantadores de modinhas, canções, hinos eclesiásticos, etc.


O problema da ausência de documentação, tanto na antiguidade como em épocas mais recentes, a exemplo do período colonial brasileiro até a primeira metade do século dezenove, causa enorme dificuldade para o preenchimento dos espaços vazios na história de nossa cantoria e abre margem a inevitáveis especulações que, mais das vezes, não contribuem senão para acirrar a curiosidade dos interessados no assunto, embora talvez possa estimular o esforço a novas e laboriosas pesquisas.

Assim como o cordel, o desafio de repentistas nos veio de além-mar, provavelmente ao mesmo tempo, embora disso não se tenha documentação. “Não conheço documentação sertaneja anterior ao séc. XVIII”, afirma Câmara Cascudo (Literatura Oral no Brasil, 1984, p. 339).
Não contestamos a qualidade dos dois poetas e cantadores de modinhas, assim como a sua capacidade de improvisar. O que não dá para aceitar, em sã consciência, é que eles tenham influenciado os nossos velhos repentistas surgidos na primeira metade do século dezenove. A esse respeito, poderíamos questionar:

1º) Se o mineiro Caldas Barbosa e o baiano Gregório de Matos houvessem aberto caminho à cantoria dos repentistas nordestinos, por que estes não surgiram em Minas ou na Bahia? 2º) Se a influência tivesse vindo daquelas violas, por que vários dos primeiros cantadores usavam pandeiro e rabeca?
Os nossos primeiros repentistas, surgidos no sertão da Paraíba, beberam, com certeza, em outras fontes, assim como os cordelistas,. Tanto os repentistas quanto os cordelistas iniciaram sua obra poética em quadras de sete sílabas, como se fazia no velho mundo. “Não houve criação brasileira nem alteração de maior na nomenclatura.” (Cascudo, obra citada, p. 339).

Com relação aos nossos repentistas, parece-nos provável que desde tempos anteriores ao seu surgimento no sertão da Paraíba, cantadores anônimos tenham perambulado Nordeste afora, ensaiando desafios, tocando viola e batendo pandeiro, porque essas coisas não surgem de vez, logo com um grupo quase organizado de diversos cantadores, ali, nas quebradas do Teixeira. Mas é claro que não temos documentação disso, como já observamos linhas atrás.

De qualquer forma, pelo sim ou pelo não, a cantoria continuará a mesma. Não é uma questiúncula desse naipe que lhe irá mudar os rumos ou as características atuais. Nosso empenho é que ela mergulhe no terceiro milênio com água e lenha, vencendo como sempre todas as adversidades e preservando os verdadeiros valores da cultura popular.

Cabe uma palavra, ainda, sobre a sextilha. Segundo José Alves Sobrinho e Átila Augusto F. de Almeida, essa forma poética teria sido criada por Silvino Pirauá Lima (Dicionário Bio-Bibliográfico dos Repentistas e Poetas de Bancada, I vol., p. 45). Em verdade, o que Pirauá fez foi introduzi-la na cantoria e no cordel, porquanto “A sextilha setissílábica, forma absolutamente vitoriosa na literatura de cordel brasileira, ABCBDB, é tão antiga quanto a quadra, ensinava Carolina Michaelis de Vasconcelos, dizendo-a popularíssima no séc. XVI.” (Conf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura Oral no Brasil, Editora da Universidade de São Paulo, 1984, p. 339).

2

Trovas

Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas.

O tempo chegou de leve,
com um pincel de bom tamanho,
e pintou de branco-neve
o meu cabelo castanho.

Além de antigos pigarros,
o fumante tem neuroses,
e a carteira de cigarros
traz a morte em vinte doses.

Perde o tempo quem se evade
pra fugir da nostalgia,
porque a flecha da saudade
sempre acerta a pontaria.

Ao voltar, com muito amor,
ao campo que já foi meu,
bebi no cálix da flor
o mel que a abelha esqueceu.

Zarpei ao romper do dia,
no meu barco, a velejar,
para "pescar" a poesia
que a Lua escondeu no mar.